Essa é a segunda parte do texto sobre IA em Campo. Leia a primeira parte do autor convidado, Calza Neto, aqui.
Do ponto de vista jurídico, o uso crescente da inteligência artificial (IA) no futebol, especialmente em relação à proteção de dados, levanta uma série de questões. Esses aspectos precisam ser cuidadosamente abordados para garantir o respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos, em especial a privacidade e a proteção de dados pessoais. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é o marco regulatório mais importante no Brasil quando se trata de proteção de dados pessoais, aplicável tanto aos dados convencionais quanto aos sensíveis, como informações biométricas utilizadas no reconhecimento facial.
No contexto do futebol, a coleta de dados dos torcedores, atletas e funcionários deve estar estritamente em conformidade com essa lei. A LGPD exige que o tratamento de dados seja transparente, limitado ao necessário para a finalidade específica, e que as organizações obtenham consentimento claro ou se baseiem em outra hipótese legal adequada para processar essas informações, como o cumprimento de obrigações legais ou a proteção do crédito.
A lei também prevê a necessidade de adoção de medidas técnicas e organizacionais para proteger os dados contra acessos não autorizados e vazamentos. Dessa forma, clubes e organizadores de eventos esportivos têm o dever de implementar políticas de cibersegurança robustas, garantindo que as informações coletadas sejam adequadamente protegidas.
A coleta de dados biométricos — como impressões digitais ou reconhecimento facial — é considerada um tratamento de dados sensíveis pela LGPD, o que implica maiores exigências legais. O princípio da minimização, previsto na lei, estabelece que apenas os dados estritamente necessários devem ser coletados e tratados. Assim, a implementação de sistemas de reconhecimento facial em estádios deve ser realizada de forma a minimizar ao máximo a coleta de dados, utilizando apenas o suficiente para atender à finalidade de segurança. Além disso, o armazenamento desses dados deve ser restrito ao período necessário para garantir a segurança do evento esportivo. O prolongamento do armazenamento, sem justificativa legal, pode acarretar em sanções previstas na LGPD, que incluem desde advertências até multas milionárias.
Os erros em sistemas de IA, como a identificação incorreta de torcedores, levantam questões sérias de responsabilidade civil. A imprecisão nos sistemas de reconhecimento facial pode resultar em constrangimentos indevidos, sendo possível que torcedores inocentes sejam barrados ou identificados erroneamente como uma ameaça.
A importância do consentimento
A obtenção de consentimento adequado, caso não haja outra base legal aplicável, é outro ponto chave no uso de IA e proteção de dados no futebol. A LGPD exige que o consentimento seja informado, livre e inequívoco, ou seja, os torcedores devem ser claramente informados sobre quais dados estão sendo coletados, para qual finalidade e por quanto tempo esses dados serão armazenados. No caso de eventos esportivos, os organizadores têm o dever de comunicar previamente aos torcedores sobre o uso de tecnologias de vigilância, como o reconhecimento facial, e fornecer uma justificativa legal para a coleta e processamento de seus dados. Além do consentimento, a transparência é fundamental. Os clubes precisam garantir que suas práticas de coleta e processamento de dados sejam de fácil entendimento para o público, fornecendo informações claras e acessíveis sobre como os dados pessoais estão sendo usados.
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) desempenha um papel central na fiscalização e regulação do tratamento de dados no Brasil. No contexto do futebol, a ANPD tem a responsabilidade de garantir que os clubes e organizadores de eventos esportivos cumpram rigorosamente a LGPD. A ANPD pode, inclusive, realizar auditorias e emitir orientações para assegurar que as boas práticas sejam seguidas, minimizando os riscos de violação de direitos dos titulares de dados.
Do ponto de vista ético, é fundamental que o uso de IA no futebol seja feito de maneira justa e não discriminatória. Estudos indicam que certos sistemas de reconhecimento facial podem ser menos precisos em identificar indivíduos de diferentes etnias e gêneros, o que pode resultar em discriminação indireta no acesso a estádios ou na participação em eventos esportivos. Juridicamente, isso pode configurar uma violação ao princípio da igualdade, previsto na Constituição Federal, e abrir espaço para litígios baseados em discriminação. Nesse sentido, os clubes devem garantir que os sistemas de IA utilizados sejam submetidos a auditorias regulares para identificar e corrigir potenciais vieses algorítmicos. A legislação brasileira, com base no Código de Defesa do Consumidor e na Constituição, impõe o dever de tratamento igualitário, e qualquer tecnologia que infrinja esse princípio pode ser contestada judicialmente.
Em resumo, a revolução da IA no futebol está apenas começando, e suas implicações são profundas e abrangentes. Desde a otimização do desempenho dos jogadores até a segurança e proteção de dados pessoais, passando pela experiência dos torcedores e a gestão dos eventos, a IA tem o potencial de transformar o esporte em uma plataforma mais segura, eficiente e tecnologicamente avançada.
Contudo, essa transformação exige um compromisso inabalável de clubes, organizadores e reguladores em garantir que o progresso tecnológico seja acompanhado por um rigoroso respeito aos direitos fundamentais. Isso inclui a conformidade com a legislação de proteção de dados, como a LGPD, a adoção de práticas transparentes e seguras de coleta e uso de dados biométricos, além de uma atenção especial aos aspectos éticos, como evitar discriminação em sistemas de reconhecimento facial.
Assim, o futuro da tecnologia no futebol dependerá de um equilíbrio cuidadoso entre inovação e responsabilidade social, ética e jurídica, assegurando que o esporte continue sendo um espaço de paixão, diversão e inclusão, enquanto acolhe as inúmeras oportunidades que a tecnologia pode proporcionar.